Formation : la médiathèque Domini

5- Desvios atuais: o direito a criança, o controlo da vida (00:45:13)

Publicado a por

Nota: Este ensinamento é essencialmente baseado num ensinamento dado por Pierre-Olivier Arduin numa das nossas sessões em Sens, em julho de 2008, sobre o mesmo tema.

 

Introdução

Vamos analisar mais de perto algumas das consequências da contraceção, para que possam decifrar melhor a retórica e as ideias que nos rodeiam. Esperamos que o ajudem a estar mais vigilante contra as ideologias que nos rodeiam.

I - A ideologia do projeto parental ou o direito a um filho.

A contraceção conduz a uma passagem da atitude normalmente espontânea de acolhimento da vida (mesmo que não seja necessariamente desejada) para uma mentalidade de escolha de ter ou não ter um filho. Desta forma, o filho torna-se o resultado de um projeto parental, neste caso um produto, um resultado do desejo e não a sua causa. É a concretização de um dos slogans do maio de 68: “um filho se eu quiser, quando eu quiser”. Onde a Igreja fala de paternidade e maternidade responsáveis, a mentalidade contraceptiva fala de um projeto parental. Isto é fundamentalmente diferente. A paternidade e a maternidade responsáveis estão sempre abertas à vida, mesmo que esta não tenha sido inicialmente prevista. Na mentalidade contraceptiva, a criança é o resultado de uma escolha absoluta dos pais. Se a criança chega apesar de tudo, o aborto é legítimo! À primeira vista, a expressão “projeto parental” pode parecer positiva; parece gerar um bem, mas esconde muitos elementos obscuros. Na verdade, o projeto parental, fruto da contraceção, é uma ideologia cujo outro nome é o direito a um filho. Vamos mostrar as implicações do projeto parental.

1-Implicões do projeto parental

A noção de projeto parental é omnipresente nos debates atuais sobre a parentalidade. É o projeto parental que justifica a contraceção, legitima o aborto, apela à PMA, exige a maternidade de substituição (GPA) ou a parentalidade entre pessoas do mesmo sexo.

Um sociólogo, Paul Yonnet, demonstrou que esta lógica do filho desejado como produto de um projeto parental rege o regime de fecundidade atual das sociedades modernas:

A dialética da conquista do filho desejado, de um filho que só é aceitável e aceite se for desejado, ou mesmo conforme, uma vez concebido, às normas veiculadas por este desejo (e portanto sem defeitos) conduziu mecanicamente à eliminação de tudo o que não correspondia, qualquer que fosse a fase da gravidez. É por isso que a apologia do filho desejado não pode existir sem a afirmação do direito à contraceção, mas também do direito ao aborto [1]”.

De facto, o projeto parental é um conceito que necessita de uma mentalidade contraceptiva constrangedora para funcionar em pleno. Antes de dar o direito a um filho, o desejo parental deve poder impedi-lo de ser concebido ou de nascer, se necessário. A mentalidade contraceptiva rejeita um filho não planeado como um mal absoluto, ao ponto de o aborto ser a solução mais eficaz exigida pelo projeto parental para finalizar o seu projeto contracetivo. Daí a tendência irresistível para recorrer ao aborto como opção contraceptiva no caso de uma gravidez não planeada. Este facto é confirmado com grande perspicácia por João Paulo II na Evangelium Vitae, n.13. Os números também o confirmam.

A mentalidade do projeto parental leva à supressão da criança quando ela não é desejada, mas reclama a contrario o seu fabrico se um obstáculo se opuser à sua chegada. É esta a problemática da fecundação in vitro. A vontade omnipotente dos pais justifica a utilização de qualquer meio, sendo a intenção de obter um filho a qualquer preço considerada boa em si mesma, conferindo legitimidade moral a qualquer técnica biomédica a utilizar para esse fim.

A Instrução doutrinal Donum Vitæ, publicada em 22 de fevereiro de 1987 pelo Cardeal Joseph Ratzinger a pedido de João Paulo II, estabelece um paralelo entre a antropologia subjacente à MAP e a mentalidade contraceptiva:

“A contracepção priva intencionalmente o ato conjugal da sua abertura à procriação e, dessa forma, realiza uma dissociação voluntária das finalidades do matrimônio. A fecundação artificial homóloga, buscando uma procriação que não é fruto de um específico ato de união conjugal, realiza objetivamente uma separação análoga entre os bens e os significados do matrimônio. (...) O ato conjugal, com o qual os esposos manifestam reciprocamente o dom de si, exprime simultaneamente a abertura ao dom da vida: é um ato indissoluvelmente corporal e espiritual. É em seu corpo e por meio dele que os esposos consumam o matrimônio e podem tornar-se pai e mãe. Para respeitar a linguagem dos corpos e a sua natural generosidade, a união conjugal deve acontecer no respeito pela abertura à procriação, e a procriação de uma pessoa deve ser o fruto e o termo do amor esponsal[2]. No discurso que dirigiu à Congregação para a Doutrina da Fé, a 31 de março de 2008, Bento XVI recordou que “com a fecundação artificial, rompeu-se a barreira estabelecida para salvaguardar a dignidade humana”.

Vamos divagar por um momento. Notamos que a publicação da Humanæ Vitæ é um dos atos mais extraordinários do magistério da Igreja sobre questões bioéticas. Ao chamar a atenção para a gravidade moral da contraceção, a encíclica de Paulo VI abriu o caminho para todos os futuros desenvolvimentos intelectuais no ensino da Igreja sobre o respeito pela vida.[3]

2- Três consequências particularmente preocupantes deste “direito a um filho”:

  • a- Em primeiro lugar, as "mães de aluguer", conhecidas como GPA. O governo francês está a considerar a despenalização desta prática, que se baseia no direito superior do projeto parental. A mãe de aluguer coloca as suas funções reprodutivas à disposição do projeto parental dos requerentes, o que leva a uma confusão entre a procriação e a simples produção de uma mercadoria, ou seja, uma criança, através de um instrumento de trabalho, o útero. O ato de renunciar à criança pela mãe de aluguer em favor do direito de dispor dela por parte dos pais requerentes mergulha-nos no mundo das coisas, apropriáveis e disponíveis. A criança é assim mercantilizada, já não é tratada como um sujeito de direito, mas como um objeto de dívida, uma coisa devida ao abrigo de um contrato.
  • b- Em segundo lugar, a investigação sobre embriões abandonados pelos pais. Em França, o “direito a um filho” permite a um casal “infértil” iniciar um processo de PMA que é reembolsado pela coletividade através do sistema de segurança social. Uma vez cumprido o direito a um filho, a ausência de projeto parental autoriza o Estado a utilizar os embriões restantes simplesmente como material de laboratório. A noção de projeto parental foi oficialmente incluída na lei de bioética de 6 de agosto de 2004. É, de certo modo, o culminar legislativo de um vasto movimento cultural iniciado com a despenalização da contraceção e do aborto, em que a vontade omnipotente dos pais se sobrepõe ao respeito da vida do jovem ser humano. O ser humano na fase embrionária pode passar do estatuto de criança para o de material biológico por vontade dos pais. O desejo dos pais torna-se a autoridade máxima para julgar a vida ou a morte da criança. Assim, o direito francês prevê que a destruição de embriões para fins científicos é autorizada se estes forem supranumerários (congelados após FIV) e não tiverem qualquer projeto parental.[4]
  • c- Em terceiro lugar, o advento de uma nova eugenia[5]. O direito a um filho não exige quantidade, mas sim qualidade. As famílias numerosas praticamente desapareceram do nosso horizonte demográfico; os casais já não incluem nos seus projectos o “gravíssimo dever de transmitir a vida humana”, para usar a expressão ponderada de Paulo VI. A tónica foi deslocada para a qualidade. A pós-modernidade abre resolutamente o caminho a uma preocupação de seleção. Uma das condições que tornam possível esta mudança é, evidentemente, o progresso tecnológico e científico, que nos dá instrumentos concretos para fazer esta seleção (técnicas de diagnóstico pré-natal e pré-implantação). Atualmente, uma criança desejada é uma criança que escolhemos manter, sendo que a escolha implica, como vimos, a possibilidade de não a manter, ou seja, de a abortar[6]. Conveniência de “produção” de acordo com as circunstâncias da vida do casal, mas também exigências de qualidade do “produto”.

A mais pequena anomalia que possa indiciar uma diminuição da qualidade de vida - conceito utilitarista que destronou o direito à vida - ou a simples possibilidade de as capacidades intelectuais ou físicas de uma criança não corresponderem às normas atuais, é suficiente para que a morte seja preferível para essa criança. Ela é vista como o mal menor em relação ao mal absoluto do nosso tempo: não se enquadrar nos critérios de eficiência definidos pela nossa sociedade hedonista. Para que o processo de vida possa continuar, ela deve provar-nos que certas condições estavam reunidas. É a criança por nascer que deve dar essa prova! Caso contrário, uma morte compassiva, uma morte misericordiosa, como lhe chamamos hoje cinicamente, detê-lo-á no seu caminho. Vivemos numa época em que a vida humana não vale nada em si mesma: há graus que a ciência define e que tornam essa vida mais ou menos aceitável, ou mesmo francamente indesejável. É o triunfo da sentença de Francis Crick, Prémio Nobel da Medicina nos anos 60 pela descoberta do ADN: “Nenhuma criança deve ser reconhecida como humana enquanto não tiver passado um certo número de testes relativos à sua dotação genética. Se não passar nestes testes, perde o direito à vida”.

O direito à criança está na base de uma verdadeira estrutura de pecado, para usar a expressão de João Paulo II, que vincula cada vez mais a transmissão da vida humana no nosso tempo.

II- Manipulação da linguagem

A cientista política e filósofa Hannah Arendt escreveu:

A força da propaganda totalitária [...] reside na sua capacidade de isolar as massas do mundo real [...]. Antes de os líderes tomarem o poder para moldar a realidade às suas mentiras, a sua propaganda distingue-se por um completo desprezo pelos factos enquanto tais: isto porque, na sua opinião, os factos dependem inteiramente do poder da pessoa que os pode fabricar[7]”.

No domínio da ética da vida, as nossas sociedades ocidentais secularizadas recorrem também à imposição de uma tutela da linguagem que se pode chamar eticamente correta. Estão a ser cunhadas novas expressões, uma nova linguagem que é suposto exprimir o Bom e o Justo, mas que não reflecte a verdade da realidade[8]. Por exemplo, as agências internacionais da ONU falam de saúde reprodutiva para os países em desenvolvimento considerados demasiado férteis; na realidade, trata-se de todo um programa para legalizar e propagar o aborto. A interrupção voluntária da gravidez ou IVG é o eufemismo escolhido para substituir o aborto; a vida de uma criança é interrompida como se pudesse ser retomada mais tarde. Existe também uma confusão crescente entre aborto e contraceção. A RU-486, conhecida como a “pílula do dia seguinte” ou “contraceção de emergência”, não é mais do que um abortivo precoce que impede o jovem embrião de se implantar na parede uterina. O mesmo se aplica ao DIU. A autoridade sanitária francesa classifica-o como uma técnica contraceptiva fiável, apesar de ser um abortivo.

Para construir o mundo que querem, impedem que as palavras designem a verdade das coisas como elas são, mas apropriam-se da linguagem para que as palavras designem a ideia que têm da realidade. A ideologia subjacente é o nominalismo, em que os nomes não designam a realidade das coisas, mas a ideia que temos delas (estamos a falar de puro subjetivismo). Na linguagem dos eticamente corretos, “a palavra já não é um instrumento para designar, mas para impedir que certas ideias cheguem à consciência”[9]. O homem moderno tolerante, a quem se diz repetidamente que é emancipado, não é aquele que age de acordo com uma escolha livre e ponderada, mas aquele que deve adotar as normas morais em vigor. Caesar dominus est supra grammaticam, o poder de César estende-se até à gramática, como diz o ditado. Porque, como dizia Camus, “dar mau nome às coisas é aumentar a desgraça do mundo”, somos convidados a não ceder à Nova Língua. Devemos estar permanentemente atentos para escrutinar e examinar esta língua convencional e consensual, a fim de apreender os interesses obscuros em que ela colabora.

III- O poder da tecnociência

A cultura da morte precisa do poder da tecnociência para a esvaziar de qualquer conteúdo ético normativo. Nos nn. 16 a 18 da Spe salvi, Bento XVI recorda Francis Bacon (1561-1626), um dos primeiros teóricos da utopia da técnica. Para Bacon, a ciência torna-se um processo cumulativo cuja missão é estabelecer “o reino do homem”. O mundo já não é para ser contemplado, como o faziam o sábio antigo ou o monge medieval, é para ser transformado o mais eficazmente possível (já não há lugar para o amor ou a gratuidade). Na sua utopia A Nova Atlântida (1623), Bacon especifica o que nós, seres humanos, podemos esperar deste aumento do conhecimento e do domínio técnico: “Prolongar a vida. Restaurar a juventude num certo grau. Retardar o envelhecimento. Curar doenças consideradas incuráveis”.

A pouco e pouco, o homo technicus substituirá Deus. Voltamos à história da Torre de Babel, onde o homem, confiante na sua tecnologia, quer fazer nome construindo uma torre que chegue até aos Céus. Deste ponto de vista, as realizações técnicas do homem são puras afirmações da sua liberdade, sem ter de “obedecer” a uma pretensa norma externa. A atividade técnica justifica-se a si própria, uma vez que elimina qualquer referência à moral ou a normas externas. O tecnicismo nega qualquer fim ético à realidade da vida humana. A Igreja é regularmente acusada de ser tecnofóbica e de ser contra o progresso científico. No entanto, a Igreja critica o progresso que é idolatrado, a ciência que desconhece o bem e o mal, nomeadamente no domínio dos organismos vivos, e que ignora qualquer consideração moral. A biomedicina não foi acompanhada pela perfeição moral que a deveria ter regulado. Bento XVI dizia:

“Creio que o verdadeiro problema no contexto histórico cultural é o desequilíbrio entre o crescimento incrivelmente rápido das nossas potencialidades técnicas e o das nossas capacidades morais, que não cresceram proporcionalmente[10]”.A razão tecnológica neutraliza a razão ética (= reflexão moral) e as escolhas tecnocráticas substituem as escolhas éticas. Bento XVI prossegue: “O contexto contemporâneo parece dar primazia à inteligência artificial, cada vez mais sob o domínio da técnica experimental, esquecendo assim que toda a ciência deve sempre salvaguardar também o homem (...). Se nos deixarmos levar pelo gosto da descoberta, sem salvaguardar os critérios que advêm de uma visão mais profunda, poderemos facilmente cair no drama de que fala o mito antigo: o jovem Ícaro, levado pelo gosto do voo em direção à liberdade absoluta e desatento aos avisos do seu velho pai Dédalo, aproxima-se cada vez mais do sol, esquecendo que as asas com que se elevou ao céu são feitas de cera. A sua terrível queda e morte são o preço que paga por esta ilusão. O escritor Dostoiévski escrevia: “Os pregadores do materialismo e do ateísmo, que proclamam a autossuficiência do homem, preparam para a humanidade, sob o pretexto de renovação e ressurreição, trevas e horrores indescritíveis”.

É por isso que, para evitar esta tragédia, Bento XVI dizia no Congresso de Latrão que assinalava o 40º aniversário da Humanæ Vitæ:

“Não podemos nunca permitir que o domínio da técnica invalide a qualidade do amor e a sacralidade da vida”.

Bento XVI, que foi o autor da Donum Vitae, corroborou, de facto, a estreita relação entre as técnicas contraceptivas e as técnicas de procriação, concluindo que “nenhuma técnica pode substituir o ato de amor que os dois cônjuges trocam”. Sem Humanæ Vitæ, a Igreja Católica não teria tido a bagagem intelectual necessária para enfrentar os desafios bioéticos contemporâneos.

Será a Igreja obscurantista, como os seus opositores gostam de nos lembrar? Não, ela está simplesmente a dizer que o progresso científico pode servir a humanidade com a condição expressa de que seja sustentado pela responsabilidade moral. Afirma que é possível conjugar e combinar o progresso biomédico e o progresso moral, sabendo que é este último aspeto que deve impulsionar o primeiro a partir do interior, se não quisermos cair na “mentalidade de confiar cegamente na omnipotência das biotecnologias[11]”, cujas repercussões podem ser terríveis para o homem e para a sociedade. A Igreja interroga esta sociedade tecnológica e pede-lhe que veja os becos sem saída para os quais estamos a caminhar. A Igreja esforça-se por implantar um outro sistema de inteligibilidade em que o respeito incondicional pela família e pela vida, por um lado, e a inovação médica, por outro, se reforçam mutuamente. O limite ético que a Igreja pede para não ser ultrapassado, antes de ser uma proibição vinculativa, é antes de mais profundamente libertador para as capacidades criativas do médico ou do perito. A liberdade da ciência torna-se assim liberdade para o bem. É o sentido de responsabilidade ética que não pode ser negado, condição prévia de todo o trabalho científico, que despertará os investigadores para a sua própria missão. Um exemplo: o apelo de Paulo VI aos cientistas para que apoiassem o conceito de paternidade responsável foi respondido para além dos seus sonhos com a investigação dos Drs. Billings sobre os mecanismos exactos da periodicidade da fertilidade humana e da transmissão da vida. Pelo contrário, a pílula, considerada como a vanguarda do arsenal contracetivo moderno, tem uma taxa de insucesso que preocupa muitos observadores, apesar da sua utilização generalizada em França. Além disso, é atualmente classificada como cancerígena de primeira categoria, devido ao seu papel no aumento do cancro da mama. Na era do sacrossanto princípio da precaução, é difícil imaginar onde é que o Estado estaria disposto a colocar os seus cidadãos - neste caso, as mulheres francesas - em tal risco. E não é tudo. Um estudo americano acaba de provar que a poluição do corpo feminino tem um impacto direto nos próprios ecossistemas, através da saturação das águas residuais com hormonas de síntese.

IV- Consequências filosóficas e políticas

1- O desenvolvimento do subjetivismo

O mundo atual parece rejeitar instintivamente a mensagem da Igreja. Porquê? Porque a modernidade não só revolucionou a ciência, a técnica, a economia e a política, como também mudou realmente o modo de pensar com o racionalismo, que não deixa espaço para o “grande Mistério” de Cristo e da Igreja. João Paulo II explica:

“O racionalismo moderno não suporta o mistério. [...]Embora reconheça, num contexto de vago deísmo, a possibilidade e até a necessidade de um Ser supremo ou divino, rejeita firmemente a noção de um Deus que se faz homem para salvar o homem[12]”.

O slogan do racionalismo foi cunhado por Descartes: “Penso, logo existo”. Enquanto para S. Tomás a existência era a condição do pensamento (as coisas existem e a partir delas penso as coisas), para Descartes é o pensamento que determina a existência: o mundo começa, por assim dizer, em mim e eu sou o seu centro...

Uma filosofia do ser aceita que há uma realidade que existia antes de mim e que está para além de mim, um Ser incriado que me criou tal como sou (para pensar). Os meus pensamentos subjectivos devem, portanto, confrontar-se com esta realidade objetiva. Se eu reduzir o mundo ao que eu posso pensar dele, então o homem é a medida de todas as coisas, não Deus. Deste modo, o desenvolvimento do sujeito na filosofia transformou-se rapidamente em subjetivismo e, consequentemente, em relativismo moral.

Não há verdade, diz-se. Porquê esta rejeição? Porque o valor supremo do homem moderno é a liberdade. Para ele, a existência de uma verdade objetiva é vista como uma ameaça à sua liberdade. Como dizia João Paulo II:

“A verdade e a liberdade andam de mãos dadas, ou então perecem miseravelmente juntas”.

A verdade sem liberdade conduz à tirania, à conversão pela espada e a uma religião de guerra. Isto é óbvio hoje em dia. Mas a liberdade sem verdade é também tirânica. Sem Verdade, sem um padrão objetivo do bem, tudo o que existe é uma luta de poder entre opiniões: aqueles que têm mais poder, influência e força militar impõem uma visão do mundo ao seu serviço. “Assim, a democracia, apesar dos seus princípios, caminha para o totalitarismo”.[13]EV 20

2- A democracia está a transformar-se em totalitarismo:

A cultura da morte precisa da cumplicidade da opinião democrática para fazer avançar os seus peões. João Paulo II não hesitou em afirmar que o resultado deste estado de coisas é a instauração de um novo tipo de totalitarismo:

a ética “nega-se a si mesma, destrói-se a si mesma e prepara-se para eliminar o outro quando já não reconhece nem respeita a sua ligação com a verdade (...).  Desaparece assim toda a referência a valores partilhados e a uma verdade absoluta para todos: a vida social aventura-se nas areias movediças do relativismo absoluto. Tudo é objeto de acordo, tudo é negociável, mesmo o mais fundamental dos direitos, o direito à vida (...). Assim, a democracia, apesar dos seus princípios, está a caminhar para o totalitarismo caraterizado [14].

É assim que o relativismo não aceita a liberdade de expressão da Igreja e de todos aqueles que pretendem refletir sobre as questões candentes da bioética. Esta descrição espantosa de Alexis de Tocqueville (+1959, famoso pelas suas análises da Revolução Francesa, da democracia americana e da evolução das democracias ocidentais em geral) torna-se realidade:

“A maioria traça um círculo formidável à volta do pensamento. Dentro desses limites, o escritor é livre; mas ai dele se ousar sair deles. Não é que tenha de temer um auto-da-fé, mas está sujeito a repugnâncias de todo o género e a perseguições diárias. A sua carreira política está-lhe vedada: ofendeu o único poder que tem o poder de a abrir. Foi-lhe negado tudo, até a glória. Antes de publicar as suas opiniões, julgava ter apoiantes; parece-lhe que já não os tem, agora que se revelou a todos; porque os que o criticam falam, e os que pensam como ele, sem terem a sua coragem, calam-se e afastam-se. Ele cede, acaba por ceder ao esforço de cada dia e retira-se para o silêncio, como que com remorsos por ter dito a verdade. As correntes e os carrascos foram os instrumentos rudes da tirania no passado, mas hoje a civilização aperfeiçoou o próprio despotismo (...). O despotismo, para atingir a alma, golpeava rudemente o corpo; e a alma, escapando a esses golpes, erguia-se gloriosamente acima dele; mas nas repúblicas democráticas, não é assim que a tirania procede; ela deixa o corpo e vai diretamente para a alma. O mestre já não diz: ou pensas como eu ou morres; diz: és livre de não pensar como eu; a tua vida, os teus bens, tudo fica contigo; mas a partir de hoje és um estrangeiro entre nós”.

É claro que os católicos podem ser ouvidos com cortesia, para respeitar uma aparência de pluralismo, mas os seus pontos de vista continuarão a ser marginalizados. Onde a bioética é praticada, o conformismo impera. São lugares “ultraconservadores” que rejeitam com força qualquer valor que possa pôr em causa o seu modelo de pensamento. O professor Didier Sicard, presidente do CCNE, ilustrou esta situação numa entrevista a Le Monde, no auge da polémica do Téléthon:

“A intervenção da Igreja Católica neste domínio parece-me simultaneamente infeliz e extraordinariamente indesejável. Ela (...) tem o direito de julgar. No entanto, não tem o direito de o impor na praça pública, que é o que está a fazer hoje (...). Tem todo o direito, e um direito inteiramente respeitável, de considerar o embrião humano como sagrado. Mas não tem o direito de o exibir publicamente[15]”.

O relativismo ético não pode aceitar um verdadeiro debate público; ele amordaçará sem hesitação qualquer vontade de resistência por parte de quem se distancia dele para o contestar.

Em conclusão

Como podemos reagir a estes abusos?

É importante mostrar as aberrações a que estamos a chegar. Estas aberrações não conduzem à felicidade, mas à desestruturação do homem e da sociedade. Hoje, as pessoas de boa vontade podem ver isso. Em seguida, é importante recordar o belo projeto de Deus sobre o amor humano. É importante recordar a lei natural. Foi-nos dada por Deus e não a podemos alterar, pois dela depende a sobrevivência do homem. Numa altura em que falamos de ecologia, temos de sublinhar que a noção de ecologia se aplica, antes de mais, ao homem. Este último não pode viver de qualquer maneira ou destruir-se-á a si próprio. É importante implementar uma nova revolução sexual. São João Paulo II lançou as bases desta nova revolução sexual, explorando o verdadeiro sentido da sexualidade, baseado essencialmente na atenção à pessoa. Cabe à geração de João Paulo II e de Bento XVI levá-la a bom termo. Não tenhamos medo, esta nova revolução está a começar como a que levou à queda da URSS: discretamente, no coração das pessoas, a palavra de verdade proclamada por este Papa polaco está a ser acolhida e a germinar!

 

[1] Paul Yonnet, L'avènement de l'individualisme contemporain, Paris, Gallimard, 2006, p. 146. Citado por Thibaud Collin.

[2] Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Donum Vitae sobre o respeito da vida humana nascente e a dignidade da procriação, 22 fevereiro de 1987, Pierre Téqui Éditeur.

[3] Sem Humanæ Vitæ, como é que se pode pensar em Donum Vitæ? Daí esta entrevista surpreendente de Libération, em que Emma Fattorini, professora de história contemporânea da Igreja na Universidade La Sapienza, admite que “hoje, a posição de Paulo VI pode parecer profética em alguns aspectos; ele tinha a intuição de que, ao dissociar completamente a sexualidade da reprodução, estávamos a criar as bases para transformações antropológicas irreversíveis, [levando] à manipulação genética e à mercantilização do corpo. Este apelo ao respeito pela lei natural e pela tradição em que se baseia a Humanæ Vitæ é melhor compreendido não só no mundo católico, mas também entre as feministas e os ecologistas preocupados com os excessos da ciência” cf. Libération, 25 de abril de 2008.

 

[4] Artigo L. 2151-2 do Código de Saúde Pública francês.

[5] Pierre-Olivier Arduin, La bioéthique et l'embryon, prefácio de Monsenhor Rey, Éditions de l'Emmanuel, 2007, pp. 57-75

[6] Thibaud Collin, Ibid.

[7] Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo. Eichmann em Jerusalém, Gallimard, Paris, 2002

[8] A obra-prima de George Orwell, 1984, retrata uma cidade totalitária aterradora, dominada por um Big Brother omnisciente e todo-poderoso. A tese de Orwell é que o controlo do poder político e moral sobre os seres humanos deve passar pelo controlo do pensamento e, consequentemente, da linguagem que o transmite. Neste mundo de pesadelo, promove-se a novilíngua, cujo objetivo essencial é reduzir o domínio do pensamento, empobrecendo os conceitos e manipulando as ideias.

[9] Pierre Béhar, Crise de civilisation, crise de langage, Géopolitique n.89, Le politiquement corret, março de 2005, p.7. Ver também os notáveis artigos de Pierre Manent, Philippe Muray e Philippe Bénéton na mesma revista.

[10] Bento XVI, Entrevista aos jornalistas antes da visita apostólica à Alemanha, 5 de agosto de 2006, Osservatore romano de língua francesa, n. 35 (2006)

[11] Conferência de imprensa do Arcebispo Sgreccia, Presidente da Academia Pontifícia para a Vida, Zenit, 24 de janeiro de 2007

[12] Carta às famílias

[13]  João Paulo II, Evangelium vitae, 25 de março de 1995, n. 20

[14] Ibidem, nn 19 e20

[15] Le Monde, A intervenção da Igreja na Téléthon é malvista, 30 de novembro de 2006

O que você quer fazer?