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4- Amor e responsabilidade (00:41:37)

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Os ensinamentos que recebemos até agora deram-nos uma melhor compreensão da crise do nosso tempo. A raiz desta crise é a perda do sentido de Deus, que se traduziu num esquecimento do sentido do homem. “Deus está morto”, dizia o filósofo Nietzsche no final do século XIX. Poderíamos acrescentar hoje: “O homem está a morrer”, como testemunham os numerosos atentados atuais à dignidade humana. O próprio homem tornou-se um grande enigma, uma grande questão.

 

1) A luta de João Paulo II para defender a verdade sobre o homem

Apesar da impressionante diversidade de temas tratados por João Paulo II durante o seu pontificado, há um que se destaca como "fio condutor": o tema do homem.[1] De facto, João Paulo II foi um incansável promotor da verdade sobre o homem. Em muitos lugares e perante públicos muito diversos, fez questão de explicar o que é o homem, de que é feito e o que constitui a sua dignidade.

Para compreender a insistência de João Paulo II acerca do homem, é preciso recordar que toda a sua vida foi uma luta contra aquilo a que chamava "culturas de morte". Enquanto polaco, Karol Wojtyla sofreu todo o peso dos horrores do nazismo e do comunismo. Posteriormente, observou com lucidez certos aspectos nefastos da evolução das sociedades ocidentais, em particular o esquecimento das suas raízes cristãs e o desprezo pela lei de Deus. Na sua oração e reflexão, João Paulo II chegou à convicção muito forte de que é impossível promover uma sociedade humanista sem a fundar em Deus, ou seja, que é impossível construir uma sociedade verdadeiramente humana pondo Deus de lado. João Paulo II sintetizou esta convicção quando disse que "um mundo sem Deus constrói-se, mais cedo ou mais tarde, contra o homem "[2].

O nazismo, o comunismo e o liberalismo moral procuraram todos defender a causa do homem, exaltá-lo e libertá-lo de tudo o que o oprime. Neste sentido, eram de facto humanismos, mas humanismos ateus porque, nestas ideologias, Deus estava ausente: tratava-se de prescindir de Deus para ser finalmente "adulto", autónomo e livre. Era preciso escolher entre Deus e o homem, e um era suposto excluir o outro.[3] Mas estas três ideologias não trouxeram o paraíso que prometiam. O nazismo e o comunismo produziram inúmeras atrocidades. Quanto ao chamado "liberalismo moral", a teoria segundo a qual as sociedades se devem reger unicamente pelos desejos dos indivíduos, também ele produziu devastações igualmente consideráveis, a começar pelos milhões de crianças legalmente abortadas, a eutanásia, os abusos bioéticos dos embriões, etc.

Mais subtilmente do que o nazismo e o comunismo, o liberalismo moral criou também um clima cultural que "sufoca" as almas, difundindo a permissividade moral e favorecendo o relativismo, em que todos os pontos de referência antropológicos e morais são postos em causa ou mesmo proibidos. O liberalismo levou também ao colapso da família e, de um modo mais geral, da ordem social baseada em valores inegociáveis. Entre aqueles que não partilham a nossa fé, muitos reconhecem agora a validade destas análises. Se o Ocidente se está a afundar hoje, é porque esqueceu a verdade moral, a verdade sobre o homem e, em última análise, a verdade sobre Deus.

Para João Paulo II, falar do homem não era apenas um " passatempo " de filantropo ou uma missão secundária na sua vida de pastor da Igreja: para ele, era uma questão de vida ou de morte. Ao proclamar a verdade sobre o homem, João Paulo pretendia combater todas as ideologias que conduzem à morte do corpo ou, mais subtilmente, à morte da alma. Neste sentido, João Paulo foi e continua a ser um profeta para o nosso tempo.[4]

2) A mensagem de João Paulo II aos jovens de França em 1980

Entre a multiplicidade de textos de João Paulo II que tratam do homem, basear-nos-emos aqui sobretudo num belíssimo texto que ele dirigiu aos jovens franceses em 1980. Nele, descreve o que é o homem, sublinhando as três grandes dimensões que o compõem: corpo, espírito e coração. Vejamos cada uma delas.

a) O corpo

A propósito do corpo, João Paulo II escreveu:

"O ser humano é um ser corpóreo. Esta simples afirmação tem consequências de grande alcance. Por muito material que seja, o corpo não é apenas um objeto qualquer. É, antes de mais, uma pessoa, no sentido de que é uma manifestação da pessoa, um meio de estar presente aos outros, de comunicar, de se exprimir numa grande variedade de formas. O corpo é uma palavra, uma linguagem. Que maravilha e que risco!”

Alguns chegam mesmo a dizer que o maio de 68 foi uma verdadeira "libertação do corpo" e dos seus desejos. Ao mesmo tempo, assiste-se hoje a um verdadeiro desprezo pelo corpo: consideramo-lo como " um objeto entre muitos outros" que podemos manipular a nosso bel-prazer nos laboratórios ou nas mesas de operação, um objeto que podemos submeter a todo o tipo de experiências sem que o nosso "eu" mais profundo seja afetado, ou ainda como uma "coisa" que podemos eliminar quando é um embrião ou quando está doente e desgastado.

De facto, esquecemo-nos de que o corpo não é um absoluto e que só pode ser verdadeiramente compreendido na sua união com a alma espiritual. O nosso corpo não é um "objeto" que possuímos, mas é verdadeiramente uma parte integrante da nossa pessoa, que é simultaneamente material e espiritual. Tudo o que o corpo exprime diz-nos algo sobre a alma. O corpo é "uma manifestação da pessoa", é como a "fala" e a "linguagem".

Isso experimentamo-lo todos os dias: a alegria da nossa alma exprime-se no nosso sorriso. A bondade ou a maldade de um homem não permanece puramente "espiritual", mas manifesta-se no seu comportamento, na expressão do seu rosto, no seu olhar. De facto, o corpo e o espírito não podem ser dissociados. Por isso, João Paulo II dizia:

" Rapazes e raparigas, tende um grande respeito pelo vosso corpo e pelo corpo dos outros! Deixem que o vosso corpo esteja ao serviço do vosso eu mais profundo! Que os vossos gestos e os vossos olhares reflictam sempre a vossa alma! Adoração do corpo? Não, nunca! Desprezo pelo corpo? Nunca. Domínio do corpo! Sim! Transfiguração do corpo! Mais ainda!”.

Ao contrário do que muitas vezes se ouve, a Igreja não despreza o corpo: pelo contrário, ela é a única que considera o corpo como um templo sagrado: o templo da nossa alma espiritual e, em última análise, o templo do próprio Deus! Dito isto, a Igreja recusa-se a fazer do corpo um absoluto: o corpo e os seus desejos devem ser orientados para o que é belo, verdadeiro e bom. Este é um dos papéis da nossa alma, que deve controlar o corpo, não para o refrear constantemente, mas para o conduzir para o nosso verdadeiro bem. Se a nossa alma não fizer o seu trabalho, o corpo destrói-se a si próprio numa busca frenética de prazeres, uma busca que nos deixa perpetuamente insatisfeitos. O filósofo Platão dizia que procurar a felicidade nos prazeres é como tentar encher um barril com furos...

Uma das consequências do que acabámos de dizer sobre o corpo diz respeito à união conjugal. Sobre este assunto, o Papa fez esta importante advertência:

"Jovens da França, a união dos corpos foi sempre a linguagem mais forte que dois seres podem falar um ao outro. E é por isso que uma tal linguagem, que toca no mistério do homem e da mulher, exige que não realizemos nunca os gestos do amor sem que as condições de uma aceitação total e definitiva do outro estejam asseguradas, e que este compromisso seja tomado publicamente no matrimónio. Jovens da França, conservai ou recuperai uma visão sã dos valores do corpo!” O Papa acrescentou: "Desejo-vos verdadeiramente que corrijais o desafio deste tempo e que vos torneis todos e todas os campeões do domínio cristão do corpo." Na mesma linha, a Mãe Maria Augusta e o nosso Pai Fundador falaram do "combate olímpico pela pureza".

b) O espírito

Escutemos agora o que João Paulo II tem a dizer sobre o espírito, que é a segunda dimensão fundamental da nossa pessoa.

O espírito é o dado original que distingue fundamentalmente o homem do mundo animal e que lhe dá um poder de domínio sobre o universo.[...] "Falando assim do espírito, entendo o espírito capaz de compreender, de querer, de amar. E propriamente por isso que o homem é homem. Salvaguardai a todo o custo em vós e à vossa volta o domínio sagrado do espírito!”

Como os animais, temos um corpo. Mas, ao contrário dos animais, temos um espírito, uma inteligência, que nos permite procurar a verdade. O espírito é, portanto, o que nos torna superiores a todas as criaturas corpóreas. Do mesmo modo, a nossa dignidade consiste em procurar a verdade e, uma vez encontrada, viver de acordo com ela.

A este respeito, João Paulo II denunciou em várias ocasiões os ataques contemporâneos à vida do espírito. Na sua Mensagem aos jovens franceses, referiu-se ao facto de as sociedades desenvolvidas,

ao mesmo tempo que se gabam da sua formidável expansão industrial, acentuam a degradação, a decomposição do homem.” O Papa acrescentou que “os mass media [...], colaboram num martelamento e esvaziamento das inteligências e das imaginações que prejudicam a saúde do espírito, do discernimento e do coração, deformam no homem a capacidade de distinguir o que é são do que é malsão.”

A análise de João Paulo II continua a ser muito atual: quanto os meios de comunicação social continuam a "enfeitiçar" as mentes e a sufocar as consciências! É por isso que o Papa nos faz este apelo enérgico:

“neste mundo tal como é e ao qual não deveis fugir, aprendei cada vez mais a reflectir, a pensar! Os estudos que fazeis devem ser um momento privilegiado de aprendizagem da vida do espírito. Desmascarai os slogans, os falsos valores, as miragens, os caminhos sem saída! Desejo-vos o espírito de recolhimento, de interioridade. Cada um e cada uma de vós, no seu nível, deve favorecer o primado do espírito e mesmo contribuir para que se honre de novo o que tem valor de eternidade mais ainda do que o que tem valor de futuro. Vivendo assim, crentes ou não-crentes, estais muito perto de Deus. Deus é Espírito! »

Vivemos num mundo que já não acredita na verdade. Mas, ao recusar a existência de uma verdade objetiva, não só nos separamos de Deus, como também pomos em causa a nossa liberdade. De facto, como disse João Paulo II,

"a liberdade só é plenamente valorizada pela aceitação da verdade: num mundo sem verdade, a liberdade perde a sua consistência, e o homem acaba exposto à violência das paixões e a condicionalismos visíveis ou ocultos."[5]

Por outras palavras, se não conhecermos a verdade e se não nos guiarmos por ela, tornamo-nos escravos dos nossos sentimentos ou da vontade do primeiro que aparecer. Daí o facto de os regimes totalitários terem sempre procurado emburrecer as populações para as amordaçar e fazer o que lhes apetece.

Noutra ocasião, o Papa escreveu que

"a liberdade renega-se a si mesma, autodestrói-se e predispõe-se à eliminação do outro, quando deixa de reconhecer e respeitar a sua ligação constitutiva com a verdade. Todas as vezes que a razão humana [quer] emancipar-se de toda a tradição e de toda a autoridade [...], a pessoa acaba por assumir como única e indiscutível referência para as próprias decisões, não já a verdade sobre o bem e o mal, mas apenas a sua subjectiva e volúvel opinião ou, simplesmente, o seu interesse egoísta e o seu capricho.[6]

Quando lemos estas linhas de João Paulo II, compreendemos melhor porque é que ele nos exortava vivamente a pensar por nós próprios e a não nos contentarmos com o "pensamento único" veiculado pelos meios de comunicação social. Precisamos de nos formar intelectualmente, porque "nada nos predispõe mais ao conformismo do que a falta de formação" (G. Thibon). Pelo nosso espírito, somos feitos para a verdade, e só a verdade nos libertará (Jo 8,32).

c) O coração

A terceira e última grande dimensão da pessoa humana é o coração. Como observou João Paulo II,

o coração  “não tem nada a ver com a pieguice nem mesmo com o sentimentalismo. O coração é abertura de todo o ser à existência dos outros, a capacidade de os adivinhar, de os compreender.” Por outras palavras, o coração é a nossa capacidade de amar. [7]

Cuidado: a palavra "amor" é uma palavra ambígua. Dizemos muitas vezes que "amamos" alguém ou alguma coisa porque sentimos uma atração. No entanto, esta atração emocional não é a totalidade do amor, nem a sua expressão mais elevada. Quando dizemos que o homem, a partir do seu coração, é chamado a amar, estamos a dizer que é chamado ao amor maior. Mas amar, como bem disse João Paulo II, "é [...] essencialmente dar-se a si mesmo aos outros. Longe de ser uma inclinação instintiva, o amor é uma decisão consciente de ir ao encontro dos outros."

Vamos tentar clarificar este ponto. Para o fazer, podemos falar dos "três graus do amor".

  • Sentir uma atração por alguém ou alguma coisa é o primeiro grau do amor, o seu início. É o chamado amor de concupiscência. Provém dos nossos afetos, ou seja, da nossa parte sensível. Consiste em desejar uma coisa pelo bem que ela me vai trazer. É, por exemplo, o amor que nos leva à comida: gosto de chocolate porque me dá um prazer sensível. Se estiver sujeito ao controlo da nossa vontade, o amor de concupiscência não é mau, sobretudo quando se trata de bens inferiores ao homem.
  • Quando se trata de pessoas e não de coisas, a situação é um pouco diferente. A pessoa humana não é um objeto que eu possa consumir, ou com o qual a minha relação possa ser meramente utilitária. Por isso, cada pessoa é digna de ser amada com um amor superior ao amor da concupiscência: este segundo grau de amor chama-se "amor de benevolência". O amor da concupiscência estava voltado para mim e para a satisfação dos meus prazeres sensíveis. O amor de benevolência afasta-me de mim próprio e orienta-me para o bem do outro. Amar alguém com uma bondade amorosa é querer o seu bem (e não apenas sentir-se bem com ele). Nesta altura, então, o amor já não é simplesmente o efeito da minha sensibilidade, mas fundamentalmente uma decisão da minha vontade: amo esta pessoa porque quero amá-la. Isto não significa que já não sinta nada por essa pessoa, mas que os meus sentimentos foram assumidos e, de certa forma, controlados pela minha vontade. O sentimento de amor não é a totalidade do amor: é apenas o início ou a superfície. Deve, portanto, ser alargado por uma decisão firme da minha vontade. Em termos práticos, a qualidade do amor pode ser vista no facto de alguém não se contentar em tirar partido do outro, mas colocar-se ao serviço do seu bem através de atos concretos e repetidos. O amor verdadeiramente humano não pode, portanto, ficar no plano do sentimento. E se um sentimento (seja ele de amor ou de qualquer outro tipo) não está de acordo com o verdadeiro bem da minha pessoa ou da pessoa por quem sinto esse sentimento, então deve ser rejeitado.
  • Finalmente, há um último nível de amor que inclui e pressupõe os dois primeiros, mas que os ultrapassa: é o que chamamos amor esponsal. Consiste no dom total da minha pessoa a uma outra que, por sua vez, se dá totalmente a mim. É o que se vive no matrimónio e, mais ainda, na vida consagrada, onde o religioso se entrega totalmente a Jesus que se entregou totalmente a ele na Cruz. Quem ama com amor esponsal já não se pertence a si mesmo, porque se entregou para sempre à pessoa amada. Juntos, tornam-se uma só carne e uma só alma. Juntos, comprometem-se a nunca viver nada de importante um sem o outro.

No matrimónio, o amor esponsal encontra uma das suas expressões (e não a única) na união conjugal. Esta união, para não se tornar enganadora, deve ser a expressão de um dom recíproco da vontade, que se concretiza nas coisas comuns da vida. Sem este compromisso firme de vontades, sem este amor vivido e testemunhado todos os dias, a união dos corpos não passa de uma falsificação do verdadeiro amor.

O amor esponsal dos cônjuges ou das pessoas consagradas é, portanto, algo de muito belo e de muito exigente.  Envolve a responsabilidade total da pessoa que assume o compromisso: Por outras palavras, não se pode brincar com o amor porque não se está a brincar com uma pessoa criada à imagem de Deus. Teremos de prestar contas da forma como amámos. É por isso que João Paulo II acrescenta na sua Mensagem aos Jovens que "para poder amar em verdade, é preciso desapegar-se de muitas coisas e sobretudo de si, dar gratuitamente, amar até ao fim. Esta desapropriação de si — obra de grande fôlego — é esgotante e exaltante. É fonte de equilíbrio. É o segredo da felicidade."

Na nossa comunidade, recebemos o carisma de educar os corações. Este carisma é muito relevante hoje, porque vivemos num mundo que pensa que o amor é algo inato, algo espontâneo: muitas vezes ficamos com uma conceção muito superficial do amor, "à l'eau de rose". O mais importante é sentir que se ama, e o amor dura enquanto durar o sentimento. Mas, como acabámos de dizer, o amor é essencialmente um dom de si que implica a nossa vontade. "Dar a si mesmo é a necessidade do amor", dizia-nos a Mãe Maria Augusta.

Amar, dando-nos aos outros, aprende-se e exige o desenvolvimento das virtudes. Não pode haver amor sem virtudes. Por outras palavras, para amar, é preciso ter recebido uma "educação para o amor", uma convicção que se encontra tanto em João Paulo II como nos nossos fundadores.[8] Através desta educação ao amor e às virtudes, em particular à castidade, tornamo-nos capazes de fazer a passagem da afetividade à vontade, do amor-sentimento ao amor-doação de si. Assim, descobrimos a chave da felicidade dada por Jesus e recordada nos Atos dos Apóstolos: "Há mais felicidade em dar do que em receber". ( Atos 20, 35)

d) O homem é feito para Deus

No final da sua mensagem, João Paulo II não podia deixar de nos recordar o mais importante: que o homem é feito para Deus. O nosso corpo, o nosso espírito e o nosso coração foram criados por Deus e para Deus. "Sem Deus o homem perde a chave de si mesmo, perde a chave da sua história.", afirmava o Papa. Só em Deus o homem se realiza plenamente. Se olharmos bem, estamos eternamente insatisfeitos aqui na terra: a beleza, a verdade e a bondade absolutas não existem neste mundo, mas nós aspiramos a elas, sejamos quem formos. Por isso, trazemos dentro de nós o desejo profundo de encontrar Deus, que é a Beleza, a Verdade e o Bem absolutos. Por outras palavras, temos desejos infinitos que só Deus, que é infinito, pode satisfazer. Por conseguinte, sem Deus, a existência humana perde o seu sentido e torna-se absurda, como bem resumiu Santo Agostinho quando escreveu: "Tu criaste-nos para ti e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em ti".

Por outro lado, o homem precisa de Deus porque Deus vem libertá-lo das escravidões que entravam o seu corpo, o seu espírito e o seu coração. A Revelação bíblica explica estas escravidões revelando a existência do pecado original. O pecado é essencialmente uma recusa de obedecer a Deus e à sua lei, uma recusa de depender do Criador. Assim sendo, compreende-se que toda a desgraça do homem provém da sua recusa de se submeter ao seu Criador com amor e confiança. Pelo contrário, a submissão a Deus liberta. A vida dos santos mostra-nos que eles foram homens e mulheres eminentemente livres, livres até ao ponto de darem a vida, por vezes até à morte. Assim, Deus não é o concorrente do homem, nem é Aquele que quer alienar o homem, mas é o Libertador por excelência.

Por fim, terminemos com um ponto em que João Paulo II insistiu muito. Tratava-se do sentido cristão do sofrimento. Toda a vida humana é marcada pelo sofrimento que, por vezes, pode tornar-se insuportável. Esta dimensão dolorosa da vida continua a ser um grande enigma, e muitas pessoas recusam-se a aceitá-la. De certo modo, isso é compreensível, porque não há nada mais contrário à nossa natureza do que o sofrimento. No entanto, em Jesus, o sofrimento assume uma outra dimensão, tornando-se um caminho de santificação e de vida eterna. É claro que Jesus não glorificou o sofrimento por si mesmo: isso seria dolorismo, uma atitude que a Igreja rejeita. No entanto, quando contemplamos Jesus na sua Paixão, compreendemos que, de uma forma misteriosa, o sofrimento e o mal podem ser superados se forem suportados pelo amor. O sofrimento vivido com Jesus torna-se fonte de vida eterna para muitos. Todo o amor verdadeiro passa pelo sofrimento, porque o amor é um dom de si. E dar-se a si mesmo é estimulante, mas é também difícil e fonte de renúncia. Por isso, não pode haver amor verdadeiro sem a aceitação do sofrimento. Por esta razão, Deus dá-nos o seu amor para o amarmos a Ele e ao próximo: é este o papel da virtude teologal da caridade. Deus vem em nosso auxílio para nos ajudar a amar como Ele.

Conclusão

Concluamos este ensinamento dando mais uma vez a palavra a São João Paulo II. Referindo-se aos humanismos ateus de que falámos anteriormente, o Papa dizia aos jovens da Sicília em 2000:

Há quem pensa que aderir a Cristo significa desconsiderar a própria humanidade, diminuindo o seu valor. Não há nada mais falso! Antes, como fiz observar em Tor Vergata, "dizendo "sim" a Cristo, dizeis "sim" a cada um dos vossos mais nobres ideais" (n. 6). Sem dúvida, escolher Jesus comporta renunciar ao pecado, mas o pecado não significa a realização da natureza humana; é um seu empobrecimento! Deus não nos fez para o mal, mas para o bem, a verdade e a beleza, isto é, para Ele, nosso criador e Pai.”[9]

Ainda hoje, o Papa João Paulo II faz um apelo aos jovens a partir do céu:

Fazei compreender, com a vossa vida, que a luz que provém do Alto não destrói o humano; ao contrário, exalta-o, como o sol, que com o seu brilho põe em relevo as formas e as cores. Deus não é um concorrente do homem, mas o amigo verdadeiro, o seu aliado mais fiel. Esta mensagem deve ser transmitida com a velocidade da luz! Não percais tempo: a vossa juventude é muito preciosa para ser desperdiçada, mesmo que seja só uma pequena parte. Deus precisa de vós e chama cada um pelo nome."[10]

 

[1] Cf. George Weigel, Bento XVI, A escolha de Deus, 2008, p. 36 e seguintes.

[2] João Paulo II explica a importância do tema do homem nos seus ensinamentos no Discurso aos Bispos de França durante a sua viagem de 1980, § 3. Ver também Robert SARAH, Deus ou nada, p.232 e sv.

[3] "O humanismo autêntico não faz do homem um estranho ou um antagonista de Deus. Pelo contrário, abrindo-se ao mistério divino, o verdadeiro humanista encontra o espaço para a sua própria liberdade, o impulso para uma busca cujos limites são o verdadeiro, o belo e o bom, características de um insubstituível valor formativo ao serviço de um autêntico progresso cultural". (Discurso do Papa João Paulo II aos professores, estudantes e funcionários da Universidade Tor Vergata de Roma, 29 de abril de 1999).

[4] Recordamos o famoso apelo de João Paulo II na sua primeira missa pública como Papa, um apelo que anunciava o programa do seu pontificado: "Irmãos e irmãs, não tenhais medo de acolher Cristo e de aceitar o seu poder! Ajudai o Papa e todos aqueles que querem servir Cristo e, com o poder de Cristo, servir o homem e a humanidade inteira! Não tenhais medo! Abri, abri de par em par as portas a Cristo! Abri ao seu poder salvador as fronteiras dos Estados, os sistemas económicos e políticos, os vastos campos da cultura, da civilização e do desenvolvimento. Não tenhais medo! Cristo sabe "o que está dentro do homem"! E só ele sabe!

[5] João –Paulo II, carta encíclica Centesimus annus, n° 46

[6] João-Paulo II, carta encíclica Evangelium vitæ, n° 19

[7] Esta "capacidade de amar" passa por dois níveis diferentes: a afetividade e a vontade.

[8] A expressão é utilizada, nomeadamente, em Amor e Responsabilidade e em Familiaris consortio n.º 6.

[9] Discurso aos jovens da Sicília, por ocasião da peregrinação jubilar ao santuário de Nossa Senhora das Lágrimas em Siracusa, 18 de outubro de 2000.

[10] Discurso aos jovens da diocese de Ischia, 5 de maio de 2002.

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